segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Halloween - Que todo horror permaneça ficcional

 

O terror/horror não é um gênero que agrada a todos. Muitos preferem não entrar em contato com obras desse tipo. Isso se respeita, é claro, pois gosto não se discute. Mas acredito que o horror, assim como qualquer gênero ficcional, nos ensina muito. Especialmente a lidar com nossos próprios fantasmas, individual ou coletivamente. Como diz Stephen King: “Monstros são reais. Vivem dentro de nós e, às vezes, vencem”.

Mesmo quando aborda o sobrenatural e a fantasia, o horror parte de medos reais. O medo do diferente. O medo da morte. O medo do desconhecido. Por isso às vezes é difícil acessar obras com essas temáticas. Durante a pandemia, por exemplo, muita gente não conseguia consumir distopias. Vivíamos uma época por si só bastante distópica. O horror real ultrapassava qualquer medo ficcional.

Então, neste Halloween, meu desejo é que todo horror permaneça ficcional. Que todo assassinato seja metafórico. Que distopias se tornem cômicas tamanha a distância que possuem da realidade. Que os monstros que enfrentamos sejam internos, e que possamos nos respeitar mutuamente em nossas diferenças. Que entendamos que quem gosta de violência na ficção, na vida real provavelmente só quer paz. Que o Halloween continue sendo uma data festiva e divertida e que possamos comemorar tranquilamente por saber que os monstros estão longe e estamos seguros para fantasiar. Goste você ou não, feliz Halloween! Coma os doces e não alimente os fantasmas.

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Meu lado psicopata (trecho de Dançando na Varanda)


Existem dois aspectos que formam a base da minha personalidade: meu lado Disney e meu lado psicopata.

[...]

Será que “lute como um psicopata” soaria muito pesado? Não me entenda mal, só quero entender o mal. E esse meu fascínio deve ter começado com as vilãs. Bem maniqueísta, eu sei, mas vilões são com frequência muito mais interessantes que os mocinhos. Porque eles têm uma liberdade maior de ação. E são poderosos, têm estilo, charme, elegância, na maior parte das vezes. Outro fator que me introduziu a essa “vida de crime” (apenas na ficção, é claro) foi a literatura policial, que comecei a procurar no início da adolescência. Em geral, iniciamos com Agatha Christie e passamos aos poucos pra drogas mais pesadas: o Sherlock de Conan Doyle, o Dupin de Edgar Allan Poe, Raymond Chandler, Luiz Alfredo Garcia-Roza e Raphael Montes pra valorizar os nacionais, e, quando você vê, já está lendo Hannibal e vendo os filmes com o Anthony Hopkins como se fosse Sessão da Tarde. Mas, veja bem, nunca houve uma passagem, uma ruptura dos filmes da Disney pra Hannibal, são coisas que se misturam na criação de uma personalidade humana mais completa e complexa. Vai dizer que você nunca parou pra observar suas esquisitices e contradições? Senão, devia. É um exercício muito bom.

Mas o que é tão fascinante nos psicopatas? Há vários elementos que podemos considerar: entre uma atração pelo perigo e pelo proibido, a liberdade de ultrapassar fronteiras socialmente estabelecidas e a glamourização dos próprios personagens assassinos pela mídia, eu destacaria a capacidade de tacar o foda-se pro que todo mundo diz e exige de você. Psicopatas não se importam. Eles não têm sentimentos empáticos, não são capazes de se conectar emocionalmente com alguém. E isso lhes dá um grande poder. Porque nada pode feri-los. Eles não têm o coração partido. Claro, assim também perdem o lado mais bonito das relações: a troca, o afeto, o acolhimento e o aprendizado. Em contrapartida, não precisam lidar com a frustração. Ou lidam com ela cortando cabeças. Deve ser terapêutico.

(Dançando na Varanda - Nicole Ayres)

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Trevas


Meu coração
Está em trevas
Endurecido
Como pedra
Por sua culpa
Sua máxima culpa

Faca afiada
Que machuca
Mata lento
Agonizando
Vi meu amor
Arder em chamas
E virar pó

Mas pode vir
Eu não mordo
Só arranco pedaço
Me dê sua mão
Me dê sua alma
E vamos valsar
No inferno

domingo, 23 de outubro de 2022

Vampiro (conto)

 

Sangue. O oxigênio líquido. Azul sob a pele. Vermelho fora dela. Não por acaso, o vermelho é um símbolo cultural de alerta. Sirenes de ambulância. Placa de trânsito. Cartão vermelho. Sangue. Azul é paz. O mar. O céu. Tudo azul. Veia. Faz sentido. Dentro do corpo, bombeia as atividades, mantém tudo funcionando. Está sob controle. Fora do corpo, indica que algo não vai bem. Fora de controle. A pele marca esse limite. Frágil fronteira entre a vida e a morte.

Sua pele é branca, quase transparente. Não tenho preconceitos. Também gosto de morenas, negras. Um pouco de variedade para quebrar a rotina. No entanto, confesso que sinto grande fascínio pelas albinas. O contraste do vermelho na pele clara é mais bonito. Batom vermelho. Vestido. Sapato. Bolsa. Sangue. Jorrando. Pingando. Manchando o forro – branco.

Sou um artista. Ou poderia ser. Minha preocupação com o cenário, os detalhes... Quero saborear todas as sensações: o cheiro, o tato, o som. O gosto. Sim. Me aproximo do corpo. Devagar, sem piscar, em estado de contemplação. Agacho a seu lado, suave. Além de tudo, seus cabelos são negros. A harmonia perfeita. Da Vinci invejaria minha musa. O corpo magro, na medida certa, sem perder as curvas. Poucos pelos. Longos cabelos escorridos. Deitada, com os braços cruzados sobre o colo, os olhos cerrados. Pacífica.

Seguro o canivete, meu cavalete. É hora de começar. Faço um pequeno rasgo na barriga. O sangue se derrama perto do umbigo. Escuro. Espesso. Sigo com cuidado a curva de cada seio, por baixo. O líquido corre para se juntar ao da outra parte. Que efeito! Ponho a língua de fora e ouso tocar a poça vermelha em formação. Amargo. Bom. Lambo mais. Mordo o abdome. Como um cão. Somos todos animais. Me afasto um pouco para observá-la. Linda. Colorida. Marcada. O tic-tac de seu coração inerte ainda ecoa no ambiente silencioso.

Sei, por instinto. É o momento do grand finale. Volto à posição anterior. O canivete perfura sua garganta de ponta a ponta. É o sangue mais vivo, o que prenuncia a morte. O mais saboroso. Sugo dessa fonte de petróleo rubro. Néctar de energia pulsante, renovadora. Satisfeito, levanto e limpo a boca. O canivete também. Silêncio. Orgulho de minha obra, já posso descansar. Registro em minha mente o retrato da cena recém-construída. Sangue seco. Borrões na pele como tinta na tela. A vanguarda dos limites do corpo humano.

quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Sala de aula (trecho de Dançando na Varanda)

 Me apaixonei pela sala de aula em 2012, quando obtive uma bolsa de iniciação à docência e comecei a trabalhar no LICOM (Línguas para a Comunidade) da UERJ, graças ao incentivo de uma amiga. Obrigada, Bia. Foi a primeira turma que assumi. Antes disso, havia atuado como monitora no curso de inglês, acompanhando os professores nas turmas, participando das conversações e tirando algumas dúvidas dos alunos. Era diferente porque eu era uma ajudante, e não a responsável pela turma. De repente, estava sozinha nessa função: preparar as aulas, explicar o conteúdo, elaborar as provas e corrigir, tudo era papel meu. Claro, havia a orientação de uma coordenadora, algumas reuniões com os outros bolsistas, onde podíamos trocar. Mesmo assim, foi um novo desafio.

E, pra quem achava que não tinha jeito pra lidar com gente, que seria impaciente e impositiva, aprendi, em sala de aula, a exercer minha autoridade de maneira doce e acolhedora. Todo mundo pode falar. Todo mundo pode sugerir. Todo mundo pode aprender, inclusive eu, com todo mundo. Meus alunos me conquistaram com muita facilidade e acho que posso dizer que a recíproca é verdadeira. Se aprender já era uma paixão, ensinar se tornou rapidamente outra. Pois qual maneira mais efetiva de aprender que transmitir o que se sabe?

(Dançando na Varanda - Nicole Ayres)

segunda-feira, 10 de outubro de 2022

A criança que habita em mim

A criança que habita em mim
Quer ser livre e brincar
Na hora que lhe convier
Sem maiores preocupações

A criança que habita em mim
Ri da adulta séria
E não entende
Pra que tantas tarefas e obrigações

A criança que habita em mim
Às vezes diz coisas sábias
Sem perceber
Em seu processo de descoberta do mundo

A criança que habita em mim
Me convida pra jogar
Lhe dou a mão
E seguimos

quinta-feira, 6 de outubro de 2022

UERJ (trecho de Dançando na Varanda)

 

Agora chegamos à faculdade, minha amada UERJ. Estranho seria se eu não me apaixonasse por aquele prédio cinza, de corredores enormes e salas abafadas. Quem não vê beleza nisso pode pelo menos apreciar os espaços arborizados das entradas, com flores, um pequeno lago, alguns patinhos sobreviventes da maldade dos imbecis que os afogam durante as festas (que revolta ao saber dessa história) e seus infinitos gatos rondando o campus (é de praxe parar pra fazer carinho em algum, ao chegar). Como eu adoro aquele lugar! Mesmo com todos os problemas, os banheiros imundos, a burocracia, as greves, todos efeitos do descaso do governo com a educação pública, é evidente o empenho dos professores e alunos pra transformar a universidade em um espaço onde o conhecimento circula. Pra mim, a UERJ cheira a liberdade, diversidade e troca.

(Dançando na Varanda - Nicole Ayres)

terça-feira, 4 de outubro de 2022

Sobre eleições

 

O cenário político brasileiro vive um momento crucial. Os resultados das últimas eleições foram bastante significativos. Eles nos mostram que, se podemos nos livrar de Bolsonaro (aguenta coração para o segundo turno), vai ser bem mais complicado extirpar o bolsonarismo e tudo que ele representa. Diversos candidatos bolsonaristas foram eleitos para compor a Câmara e o Senado, entre eles Damares, Mourão e Ricardo Salles. Parece um circo dos horrores.

O bolsonarismo representa o pior do brasileiro, nosso lado mais preconceituoso, conservador e elitista. Isso não surgiu com Bolsonaro, mas ele dá voz a essas pessoas. O anti-petismo é apenas uma desculpa. Fazer críticas ao governo do PT e defender a alternância de poder é uma coisa. Porém, eleger um cara despreparado, corrupto (mas o problema era mesmo a corrupção?), misógino, racista, homofóbico, ignorante, e por aí vai, é algo bem diferente.

É claro que não precisamos concordar com tudo o que um candidato diz/faz para elegê-lo. Podemos (e devemos) criticar e cobrar nossos representantes. Mas o debate político se tornou tão raso que pouco se discutem propostas. Entramos numa polarização odienta e violenta, com discursos inflamados, ataques pessoais, agressões e até assassinatos. Isso é preocupante.

A questão vai muito além de ser de direita ou de esquerda, de pensar diferente, o que é normal e saudável para a política. Não (re)eleger Bolsonaro é uma questão de valores. “Alemanha acima de tudo” era o slogan nazista de Hitler, que, vale lembrar, chegou ao poder legalmente. Eu acredito num Brasil não acima de tudo, mas acima (e além) de Bolsonaro. Acredito num Deus não acima, mas ao lado de todos, até de quem não acredita nEle (afinal, o Estado é laico – risos nervosos).

No segundo turno, por favor, vote com consciência. Não jogue baixo, não dissemine fake news, não se exalte (ai, eu sei que é difícil, mas vamos tentar). Discuta ideias. Defenda valores. Não vote por medo nem por ódio. Vote com a mente e com o coração. Vamos tentar ser melhores – pelo menos a gente faz a nossa parte.