As datas festivas também guardam sua boa dose de
hipocrisia. Não há laços familiares que resistam a uma bela ceia de Natal.
Toda a vila está enfeitada para o Natal. Luzes
pisca-pisca coloridas animam a paisagem noturna. Guirlandas, renas, gnomos e
papais noeis pendurados nas janelas das casas arrancam sorrisos dos passantes.
Poucas pessoas circulam pelas ruas, agasalhadas por causa do frio, e se
cumprimentam ao se cruzarem. Uma das casas, grande e aconchegante, se destaca. A
casa também está toda enfeitada por dentro: meias listradas sob a lareira
acesa, globos de neve temáticos sob o móvel e, no centro da sala, uma bela e
imponente árvore de Natal. Uma música se propaga da TV do quarto de Gabriel, de
onde ele assiste a um especial de fim de ano.
A campainha toca. Gabriel se levanta da cama e
corre até a sala. Ele abre a porta. Não há ninguém do lado de fora. Ouve-se
apenas o barulho do vento. Gabriel vê um embrulho de presente e pega, levando-o
para dentro de casa. Após fechar a porta, o menino abre o presente, curioso. Dentro
da caixa, há um duende de roupas verdes e cabelo ruivo, muito bonito e
realista, quase do tamanho da criança. Gabriel fica impressionado. Carregando o
duende no colo, ele corre até o escritório da mãe. Dentro dele, Flávia
trabalha, mexendo no laptop e falando ao celular. O filho entra com empolgação.
Ele mostra o brinquedo novo, mas ela permanece indiferente e pede que ele saia.
O menino entra no quarto com seu boneco. Ele põe o
duende de pé, perto de sua enorme coleção de brinquedos de todos os tipos. Um
pouco mais tarde, a campainha toca. Gabriel atende. Rodrigo entra, carregando
uma mala e uma gaiola. Após fechar a porta, ele abraça a criança.
– Olha só o que eu trouxe pra você.
Ele aproxima a gaiola, com um filhote de Golden
Retriever dentro. Gabriel fica exultante.
– Que lindo!
O menino faz carinho no cão. Rodrigo sorri.
– Que bom que você gostou! Eu vou lá dar um
beijinho na sua mãe.
– Tá
bom. Valeu, Rodrigo!
Rodrigo faz um cafuné em Gabriel e passa para
dentro com a mala. Gabriel vai brincar no quarto, junto com seu novo pet. Pouco depois, no quarto ao lado,
são ouvidos gemidos de prazer. Gabriel coloca uma música alta para abafar o
som. Ele volta a brincar. A porta do quarto de Flávia está trancada. Os gemidos
ficam cada vez mais altos.
Um pouco mais tarde, uma sombra de criança passa
rapidamente pelo corredor. Ouve-se um grande barulho de algo batendo com força
no chão e objetos quebrando, além de um ganido de cachorro. Flávia corre para a
cozinha e grita, furiosa:
– GABRIEL! O
que foi que você fez?!
Um móvel está caído e várias louças espatifadas. Uma
poça de sangue se forma por baixo do armário. Gabriel está encolhido num canto,
abraçado ao duende. Rodrigo se aproxima.
– Gabriel! Que sangue é esse?
Flávia retoma:
– GAROTO! Como é que você fez isso?!
Um fio de voz amedrontado reage:
– Não fui eu, mãe!
– Como
não foi você?! Quem mais tem nessa casa?
– F-fo-foi o
duende...
– Ah, o duende?!
O duende fez esse estrago?
– Foi... – abaixa
a cabeça, constrangido.
– Meu
Deus do céu! Quanto caco de vidro! Você se machucou, Gabriel? – se aproxima do garoto. Ele faz que não
com a cabeça. – Então que sangue é esse?!
A criança quase chora:
– O cachorro...
– O QUÊ?!
– Gabriel, você MATOU o cachorro?
– Não fui eu! O duende, ele... Empurrou o
armário... Ele tem força...
– Você tem NOÇÃO do que você FEZ?
– Eu não queria...
– Meu Deus do céu!
Flávia e Rodrigo
estão chocados. O clima pesa como o armário de madeira.
– Vai pro seu
quarto, Gabriel! E não saia de lá até eu mandar!
Ele obedece à mãe. O menino deita em sua cama,
chateado. Ele ouve uma discussão entre Flávia e Rodrigo lá fora. De repente,
Flávia entra no quarto.
– Esse
ano, não vai ter Natal aqui nessa casa! Você vai passar o dia inteiro trancado
no quarto, pensando nas besteiras que fez! Se quiser ir chorar no ombro do
babaca do Rodrigo, pode ir! Mas de mim você não vai receber nada, nem um Feliz
Natal! Entendido?!
Gabriel assente com a cabeça, magoado. Flávia sai.
Novos rumores de discussão são ouvidos. Gabriel se desliga da discussão e tenta
dormir. O menino se agita durante a noite. Ele tem um pesadelo. Acorda
assustado, suando frio. Respira fundo. Ao olhar ao redor, sob a luz do abajur, nota
os olhos verdes do duende brilhando, de forma sombria. O garoto se assusta.
De madrugada, Gabriel acorda. Ele se senta na cama,
boceja e se espreguiça. Ao olhar ao redor, vê que todos os seus brinquedos
estão destruídos, exceto pelo duende. Espantado, anda até o boneco.
– O quê?! Por que... Por que você fez isso?!
No quarto, Flávia e Rodrigo dormem. Ela ouve um grande
barulho vindo da sala. Suspira.
– Ah,
não, de novo não!
Flávia se levanta e sai para ver o que aconteceu.
Quando entra na sala, faz uma cara de desespero ao perceber que a decoração de
Natal está toda destruída. Meias
jogadas no chão, globos quebrados, com água vazando, e a árvore caída, com
enfeites espatifados. Gabriel, a um canto, olha para a mãe, assustado. A seu
lado, o duende deitado no chão.
– Mãe!
Me escuta! Não foi minha culpa! Eu falei pra ele não fazer isso, eu falei! Primeiro,
ele ficou com ciúmes dos meus outros brinquedos e destruiu todos! Depois, ele
veio pra sala. Começou a arrancar os enfeites, derrubar tudo. Um horror! Eu
tentei parar, tentei fazer ele parar, mas ele não parou! Mãe, por favor, você
precisa acreditar em mim! É esse duende! Ele está tentando acabar com o nosso
Natal!
– E pelo
visto conseguiu, não é, Gabriel? Olha só pra isso... Acabou. Acabou o Natal,
acabou tudo! – olha o duende ao lado de Gabriel – E esse maldito brinquedo, que a gente nem sabe como veio parar
aqui!
– Ele se
revoltou! Eu não sei como...
– Chega,
Gabriel! Chega de mentiras! Confessa logo que você quer destruir a minha vida!
É isso que você quer, não é? Quer destruir o meu Natal? Quer me punir porque eu
não te dou atenção? Então pronto! Pronto! Conseguiu!
– Não,
mãe, eu não queria isso!
Ela se aproxima do filho.
– Sabe o que faltou na sua educação? Umas boas
palmadas! Uma surra é o que você merece, sua peste! – bate em Gabriel – Gabriel,
nome de anjo! Eu devia ter te batizado de Lúcifer!
O menino chora de dor.
– Não! Para, mãe, por favor!
Flávia continua batendo em Gabriel, com raiva. Ela
olha o duende ao lado e se aproxima.
– E esse
duende MALDITO!
Enquanto Flávia dá chutes no brinquedo, uma pequena
mão segura a perna da mulher, que se desequilibra e cai para frente. Ao cair, Flávia
bate forte com a cabeça no chão. Uma poça de sangue se forma em torno do corpo da
mulher. O sangue se espalha pelo chão e se mistura aos enfeites vermelhos de
Natal, causando um efeito macabro. Gabriel olha o cadáver da mãe, perplexo. O
menino não consegue esboçar reação. Os olhos verdes do duende brilham. Rodrigo
chega à sala. O cenário é de destruição, caos e morte. Alheias a toda tragédia,
algumas crianças brincam no parque.
Publicado na coletânea Contos de um Natal Sem Luz Volume V - Editora Illuminare - 2018