Tinha aquele sonho recorrente: uma
mulher, trajando um vestido medieval, amarrada a uma grande fogueira, era
assistida por uma multidão, que clamava xingamentos incompreensíveis. Podia ver
nas feições dos espectadores que estavam tomados pela ira e sentiam um grande
prazer com o sofrimento da vítima. Não conseguia, contudo, distinguir o rosto
da mulher. O fogo alto e a fumaça não permitiam.
Acordava sempre muito agitada desse
pesadelo. A respiração ofegante, as mãos tremendo, o suor escorrendo pela face
pálida. Era muito viva aquela cena e lhe causava forte agonia. Olhou o celular.
Faltava meia hora pro despertador tocar. Ia tentar descansar mais um pouquinho,
mas viu que tinha mensagem da Rebeca e resolveu abrir. “Amiga, vc tá bem? Me
liga qndo puder”. Franziu a testa, ainda meio sonolenta. Respondeu: “Pq? O q
aconteceu?”. Havia várias notificações nas redes sociais com mensagens de
desconhecidos. “Gostosa! Quero ver ao vivo. Topa?”. “Malhação tá em dia, hein!
Adorei”. “Gosto de vagabunda assim como vc na cama. Me liga, gata”. “Vc tb
curte mulheres? Me dá uma chance, vai”. “Quero te chupar gostoso”. “Teu cuzinho
apertadinho delícia, meto tudo”. Largou o celular em cima da cama. Ficou
encarando a parede. Tentou respirar fundo.
Rebeca ligou. Atendeu depressa, mas
ainda meio aérea.
- O que tá acontecendo?
- Você ainda não viu?
- Eu acordei agora. É o único dia
que posso dormir um pouco mais e... Me conta, por favor, não quero ficar
imaginando. Mas foi ele, não foi?
- Foi.
- O que aquele filho da puta fez?
- Ele vazou um vídeo íntimo de
vocês... Já tem mais de trezentas visualizações.
- Mas que vídeo? A gente nunca
gravou esse tipo de vídeo!
- Então ele deve ter gravado
escondido. Porque dá pra ver que é você.
- Caralho, eu não acredito!
- Calma, respira... A gente vai denunciar
esse escroto e tirar o vídeo do ar.
- Essas coisas demoram, Rebeca! Até
lá quantas pessoas já vão ter visto a minha boceta? Que humilhação, meu Deus!
- Amiga, eu tenho um tio advogado,
ele pode ajudar. A gente vai com você até a delegacia.
- Eu não sei se tenho cabeça...
- O que o Leandro fez é crime! Ele
tem que pagar por isso.
- Ele vai pagar!
Sua mente fervilhava de ódio, dor,
tristeza, tudo junto, num caldeirão de caos emocional.
- Me manda o vídeo.
- Você tem certeza?
- Me manda essa merda agora.
Assistiu. Foi uma noite quente dos
dois. Dava pra ver bem o seu rosto e todo o corpo, em diferentes posições. Os
gritos, gemidos e sacanagens trocadas. Ela gostava de ser dominada na cama. Mas
só na cama. Era isso que Fernando não entendia. Então, o sexo era realmente
ótimo, um momento de entrega e êxtase supremo. Porém, no dia a dia, as crises
de ciúme e tentativas de controle sobre seu corpo e sua vida tornaram
impossível a convivência. No primeiro mês não era assim, ele a tratava como uma
princesa, satisfazia todas as suas vontades. Até começarem as cobranças. “Aonde
você vai a essa hora e com essa roupa?”. “Quem é esse cara que te adicionou no
Insta?”. “Como se chama esse amigo, por que ele manda tanta mensagem?”. “Você
acha que pode me enganar? Cuidado”. Por isso decidiu terminar, com três meses
de namoro. Tinha aguentado até demais. Estava exausta, não tinha mais sossego.
Aquilo a estava desgastando e destruindo. Foi uma libertação se livrar dele.
Teve o total apoio das amigas, especialmente de Rebeca.
O problema é que Fernando nunca se
conformou com o término. Ligava e mandava mensagens sem parar. Se desculpava,
pedia pra voltar, ameaçava tirar a própria vida. Mas ela já tinha pesquisado e
identificava nele o padrão do cara abusivo. Por isso não cedeu. Bloqueou o
número, excluiu o contato. Ele a perseguiu na faculdade, queria conversar, ela
tinha que lhe dar uma chance, poxa. Ela disse que chamaria a polícia se ele não
parasse de procurá-la.
- Então você quer guerra? Ok. Se
prepare. Garanto que você vai se arrepender, vadia!
Foi a última coisa que o idiota lhe
disse. Não levou a sério. Isso fazia cerca de uma semana. Por fim, ele lançou a
bomba, que a atingiu em cheio. Adriana viveu semanas de inferno. Não conseguia
ir à faculdade, pois era apontada por todos. Depois isso passou a acontecer no
próprio prédio onde morava. Imagens do vídeo foram vazadas para sites pornô e
de prostituição. Teve que trocar de linha pra parar de receber os mais diversos
tipos de ataques e provocações. Desistiu das redes sociais por um tempo. Verdade
que também recebeu apoio de amigos e mesmo de desconhecidos. O tio advogado da
Rebeca conseguiu tirar o vídeo do ar e processar Fernando. Mas ir à delegacia
foi um desgaste, uma exposição enorme, e sabia que o processo demoraria meses
pra dar algum resultado, se desse. E o vídeo já tinha viralizado. O estrago
estava feito.
Adriana quase não saía mais de casa.
Passava os dias na cama, se culpando por não ter percebido antes o traste que
namorou. Seus pais haviam ligado, preocupados, e também a culparam: “Por que
você deixou gravar esse vídeo? Por que namorou um cara desse? Foi pra isso que
você se mudou praí? E os seus estudos, não está focada nisso?”. Tentou explicar
que deixara a cidade do interior pra estudar sim, que se cuidava, havia
conhecido Fernando na faculdade e ele parecia um bom rapaz, quando deu sinais
de um comportamento abusivo logo ela decidiu terminar... Mas a família só se
preocupava com a moral, o que os outros iam pensar, e a reputação dela? Isso só
aumentou a pressão que já pesava sobre seus ombros.
Agora tinha o sonho quase todos os
dias. A mulher ardia na fogueira. Aos poucos, alguns elementos foram se
tornando mais nítidos. Conseguiu entender as falas da plateia. “Vagabunda!”. “Piranha!”.
“Puta!”. “Pecadora!”. “Vai arder no fogo do inferno!”. “Que sirva de exemplo pras
outras!”. “Quem mandou se entregar a quem não devia?”. A multidão gritava e
erguia as mãos, apontando dedos, fazendo gestos obscenos, enquanto a pobre
mulher queimava e urrava de dor. Seu rosto finalmente ficou visível: pôde
distinguir seus olhos castanhos, que se fechavam, acuados, seu nariz arrebitado
inalando fumaça e o cabelo ruivo cacheado... Era ela. Adriana estava no centro da
fogueira, sendo julgada e condenada. Reparou em alguns rostos conhecidos na
multidão: colegas, vizinhos, seus pais... Todos gritando insultos e comemorando
as labaredas vencendo a resistência da bruxa.
Adriana acordou tomada por essa
súbita revelação. Agora tudo passou a fazer mais sentido. Ela era conhecida
como “bruxinha” por seus amigos, pois gostava muito de esoterismo. Decidiu
investigar melhor o sonho, não podia mais ignorar seu significado.
Consultou astrólogos, tarólogos,
terapeutas. Todos lhe diziam que ela devia tomar cuidado. Era muito intensa –
tinha excesso do elemento fogo no mapa. Podia se queimar. Porém, o mais
interessante foi descobrir, no mapa genético, uma ancestral que havia sido
condenada à fogueira por bruxaria. Acreditava que, na verdade, era ela nos seus
sonhos. E que precisava vingá-la.
Assim, cansou de sentir pena de si
mesma e resolveu agir. Tomou algumas doses de vodka pra ter coragem. Ligou pra
Fernando.
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