terça-feira, 25 de abril de 2023

Autoamor

 

Preciso dizer que me amo. Mesmo nos dias ruins. Mesmo de máscara de argila na cara, de pijama largada na cama, o cabelo bagunçado, a unha por fazer. Me amo preguiçosa, manhosa, birrenta, insuportável. Me amo em todas as circunstâncias. Nunca vou desistir de mim. Me amo e me aceito como sou. Tenho orgulho de quem me tornei, das minhas metamorfoses diárias. Sei que posso me aperfeiçoar, mas dentro dos meus limites e no meu próprio ritmo, naturalmente. Aceito os meus silêncios, os meus gritos surdos, as minhas manias. Guardo os meus segredos. Recebo as críticas construtivas, descarto as destrutivas. Eu me amo infinita, verdadeira e eternamente. E quem não me ama de volta não tem espaço no meu coração.

terça-feira, 11 de abril de 2023

Vizinhança (conto de terror)

 



Quando Beto e Ruth se mudaram para o condomínio, todos os acharam muito simpáticos. Estavam sempre sorridentes, davam “Bom dia” aos vizinhos e porteiros, seguravam a porta do elevador... Um casal muito amável, além de discreto e silencioso. Não se ouvia um ruído do apartamento.

Eles estavam instalados há cerca de dois meses quando os crimes começaram a acontecer. Um porteiro e dois moradores desapareceram sem deixar rastros. Isso criou um pânico no condomínio. Acionaram a polícia. Todos foram entrevistados, as imagens das câmeras analisadas e nenhum indício encontrado. Até que resolveram revistar o lixo. Assim, descobriram os restos mortais da última moradora desaparecida nos sacos de lixo. Isso causou um desespero ainda maior. Muitos se mudaram. Os que ficaram evitavam sair de casa desacompanhados. Reforçaram a segurança. Por algumas semanas, os crimes pararam. As coisas pareciam que voltariam ao normal. Porém, os moradores ainda estavam inquietos com os crimes não resolvidos.

Certo dia, Dona Martha resolveu visitar Beto e Ruth, que eram seus vizinhos de cima. Ela foi recebida como sempre, com muita cordialidade. Bebeu um delicioso café caseiro e provou um bolo de cenoura divino.

– Foi você quem fez, Ruth? Eu quero a receita!

– Foi o Beto, ele que cozinha. Muito bom, não é?

– Que mão de fada ele tem!

– Obrigado, Dona Martha.

A senhora pousou o prato na mesa de centro e olhou para os vizinhos com o semblante preocupado.

– Vocês estão se sentindo seguros?

– Na medida do possível... – respondeu Ruth, hesitante.

– Eu confesso que estou apavorada! Meu Deus! Um assassino, no nosso prédio! Nunca pensei numa coisa dessas...

– A cidade anda muito violenta. – observou Beto.

– Mas, dentro de casa, a gente espera ter segurança. Isso parece até coisa de série americana! Lá é que tem aqueles psicopatas malucos! Deus me livre, nunca achei que isso fosse acontecer tão perto da gente.

– Bem, os desaparecimentos pararam de acontecer, não é?

– Mas quem foi que matou os outros? Nem todos os corpos foram encontrados. E o assassino ainda está solto! Pode voltar a agir a qualquer momento.

– A polícia não tem sido eficiente.

– Não mesmo! Não deixam a gente nem um pouco tranquila.

– Fique calma, Dona Martha. Tudo vai se resolver.

Ruth se sentou ao lado da vizinha e afagou seu ombro.

– Você é muito gentil, minha filha. Vocês dois. São um casal maravilhoso! Fiquei tão feliz quando se mudaram pra cá, mas agora... Já devem estar arrependidos.

– Acho que realmente não foi o melhor momento, mas como poderíamos imaginar?

– Que coisa horrível...

Fizeram uma pausa. Dona Martha retomou:

– Eu lembrei de uma coisa. Vocês não têm um sobrinho hacker?

– Sim, o Pedro... Mas o que tem ele?

– Ele não poderia ajudar com a questão das câmeras?

– Como?

– Eu fiquei sabendo que desconfiaram que as imagens das câmeras foram adulteradas.

– Quem disse isso?

– Um policial.

Ruth e Beto se entreolharam.

– Nas últimas imagens dos moradores desaparecidos, eles estavam sempre saindo do prédio. E nunca mais voltavam. Mas alguns corpos foram encontrados na lixeira. O que quer dizer que foi alguém de dentro, e não de fora. O Cleiton, o porteiro, também foi visto no elevador, mas não se sabe em qual andar ele foi parar, houve uma falha na câmera... Providencial, não acham?

– A senhora está desconfiada de quê?

– A polícia que está! Parece que alteraram as imagens. De repente o... Pedro, não é? De repente ele pode ajudar.

– Mas esse é o trabalho da polícia. Acho que a gente não deve interferir. – Beto pontuou.

– Sei lá, eu só pensei... Sei lá. Aliás...

A vizinha franziu a sobrancelha, reflexiva.

– O que foi, Dona Martha?

– O Cleiton não vinha aqui aquele dia?

– O quê?

– Ele vinha fazer um conserto aqui... Tinha comentado alguma coisa comigo. Vocês não estão com um problema de encanamento?

– Não. A senhora deve estar enganada. – Ruth foi seca.

– Eu me lembro, ele disse... Disse que passaria aqui pra ver isso. Não veio?

– Ele não veio aqui.

– Então talvez o assassino tenha pegado ele antes! Ai, meu Deus!

– A senhora está muito nervosa, Dona Martha. Quer uma água com açúcar?

Ruth se levantou e foi até a cozinha.

– Não precisa, minha filha. Eu acho que já vou indo... Não quero atrapalhar vocês.

– Não atrapalha. – Beto disse, num tom apaziguador.

– É, mas acho melhor ir embora.

– A senhora não vai embora nesse estado! – Ruth falou alto da cozinha.

– Eu estou bem, é que esse assunto... Enfim.

– Tome pelo menos a água.

Ruth voltou para a sala com o copo na mão e o ofereceu à senhora.

– Obrigada.

Martha tomou lentamente todo o líquido.

– Agora eu vou. Obrigada. Desculpem vir aqui com esse assunto chato, incomodar vocês.

– Tudo bem, não tem problema.

Ruth sorriu. A vizinha foi se aproximando da porta.

– Vocês abrem pra mim?

– Espere um pouco.

– Esperar o quê?

– O efeito.

– O quê?

– Da água com açúcar. Agora a senhora vai ficar calminha...

Martha olhou a outra sem entender. Até que começou a se sentir estranha... O corpo foi pesando, a cabeça latejava...

– O que... O que está acontecendo?

– Calma, Dona Martha. Vai ficar tudo bem. É que a senhora é tão tagarela. Vai que comenta a coisa errada com a pessoa errada. A gente não pode correr riscos.

– Vocês... Vocês... Eu não... Soco.... Socor...

E apagou. Beto a segurou por trás, impedindo que tombasse. Depositou delicadamente a senhora no sofá. Olhou para a esposa.

– E aí, como vamos fazer?

– O de sempre. Leva a velha pro ateliê de pintura, já está tudo forrado. Aplica o sedativo. Eu levo os instrumentos.

– Não acha que vai fazer barulho?

– Não, a gente já tem prática. Vai ser fácil desmembrar.

– E será que alguém viu a mulher vindo pra cá?

– Se viu... Vamos descobrir. Antes da polícia, que não serve pra nada. E aí a gente cuida disso.

– Você sempre pensa em tudo.

Beto sorriu e estalou um selinho na boca da esposa.

– Por isso que eu te amo.

– Também te amo, bebê!

Ruth era médica e Beto artista. Não tinham filhos nem animais de estimação. Então, para matar o tédio... Resolveram matar. A primeira vítima foi de oportunidade. Cleiton, o porteiro, de fato fora consertar um problema no encanamento quando caiu da escada e bateu com a cabeça. Eles poderiam ter chamado a ambulância, mas ficaram fascinados com a cena. Resolveram deixá-lo agonizar até o último suspiro. Em seguida, esquartejaram o homem e foram jogando os sacos de lixo aos poucos. Ninguém desconfiou.

Depois, foram ficando mais ousados. Os outros crimes foram premeditados. Mandaram mensagem para os vizinhos marcando uma visitinha. Deram um comprimido para que dormissem e se divertiram com seus corpos. Queriam mantê-los vivos enquanto os esquartejavam, mas não podiam correr o risco que gritassem e chamassem a atenção. Então trataram de matá-los enquanto estavam sedados e depois os desmembraram. Pediram a ajuda do sobrinho para adulterar as imagens das câmeras. Ele foi discreto, topava tudo por uma graninha extra. Não havia como ligar as mortes a eles, os vizinhos cordiais e polidos acima de qualquer suspeita.

Sabiam que precisariam tomar cuidado. Mas os assassinatos os mantinham ainda mais unidos e apaixonados. Era o hobby perfeito. Nada lhes dava mais adrenalina. Sempre depois de esquartejaram um corpo, transavam loucamente, altamente excitados. Até que a morte os separe... A morte, na verdade, era o que os mantinha juntos agora e para sempre.

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Conto integrante da antologia "De mãos dadas com a morte", da editora Uli.