segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

Presente de Natal (conto)

 

Cinco da manhã. O despertador toca. Uma. Duas. Três vezes. Na quarta, uma mão pesa sobre o celular e o polegar ágil desliza sobre a tela. Merda de barulho irritante! Anunciando um novo dia. Mais um dia de cão.

Semiconsciente, Silene escova os dentes após o café apressado. Se arruma. Dá um beijo na neta, que deve acordar mais tarde pra ir à escola. Desce o morro. Espera seu ônibus no ponto. Até que ele passa rápido. Que bom. Hoje não vai atrasar. Odeia ouvir sermão da patroa.

Na lata de sardinha urbana, ela se ajeita como pode. Sempre se sentiu um peixe fora d’água. Agora faz parte de um cardume. Algum malandro passa a mão na sua bunda. Ei! Não se tem um minuto de paz.

Uma hora depois, pega o segundo ônibus, até o trabalho, na zona sul do Rio. O transporte sempre lotado. Silene se segura e aperta a bolsa contra o peito. Suspira. Mais um dia. Menos um dia. Fim de semana já chega. É Natal. Nessa época, é obrigatório ser feliz. Mas a felicidade é um privilégio de poucos. Quem disse que felicidade não se compra provavelmente já comprou a sua.

xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx

Leia a continuação do conto na Amazon.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

Não pira, Selma (conto)

 



Itutaba. Itatiba. Ituitaba. Ituiutaba. I-tui-u-ta-ba. Êta nominho difícil sô! Significa “aldeia do lamaçal do rio”, em tupi. Ou “povoação do rio Tijuco”. Tijuco quer dizer lama. E Tijuca, o bairro carioca? Então, eu fui pesquisar também. Believe me or not, it’s “água podre”. Legal, né? Zona norte precursora, antecipando o problema de abastecimento da CEDAE, logo no nome. Meu bairro, essa merda. E pensar que saí da Tijuca pra parar no rio Tijuco. Da água podre pra lama. Que evolução!

– Tudo pronto aí, seu Josimar?

– Tá quase, minha fia. Falta só uns detaizim.

Ele preparava o barco pra navegar. Um barquinho minúsculo, e ainda cheio de material de pesca, não sei como a gente ia fazer pra caber com o equipamento de filmagem e tudo ali dentro! Seu Josimar, um senhor humilde, pele morena de sol, enrugada pelo tempo, sorriso de dentes apodrecidos, cheio de janelas – janelas da alma, nos dentes e não nos olhos. Porque o seu olhar revelava o contrário do que o corpo franzino fazia parecer: uma capacidade de enfrentar diariamente o calor escaldante do sol – direto na pele, sem protetor –, as tempestades na água, os animais selvagens, todas as forças da natureza – porque ele era a própria força. Seu Josimar era um forte! Ria de tudo, mostrando os dentinhos sem tratamento, numa alegria de viver incompreensível para nós, “civilizados”. Por que ele estaria contente? De onde tirava essa coragem, essa persistência? Lutava pra quê? Pra não morrer? E isso bastava? Aquela espontaneidade, o simples viver e cumprir sua função, na mais absoluta resignação, me desconcertava, a mim e a todos nós, cheios de grandes privilégios e problemas pequenos. Mas sigamos, que o trajeto é longo e eu já tô vendo que vai dar ruim esse monte de gente e câmera num barquinho desse tamanho!

xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx

Leia a continuação do conto na antologia "Natureza degradada: contos ecológicos".