domingo, 23 de outubro de 2022

Vampiro (conto)

 

Sangue. O oxigênio líquido. Azul sob a pele. Vermelho fora dela. Não por acaso, o vermelho é um símbolo cultural de alerta. Sirenes de ambulância. Placa de trânsito. Cartão vermelho. Sangue. Azul é paz. O mar. O céu. Tudo azul. Veia. Faz sentido. Dentro do corpo, bombeia as atividades, mantém tudo funcionando. Está sob controle. Fora do corpo, indica que algo não vai bem. Fora de controle. A pele marca esse limite. Frágil fronteira entre a vida e a morte.

Sua pele é branca, quase transparente. Não tenho preconceitos. Também gosto de morenas, negras. Um pouco de variedade para quebrar a rotina. No entanto, confesso que sinto grande fascínio pelas albinas. O contraste do vermelho na pele clara é mais bonito. Batom vermelho. Vestido. Sapato. Bolsa. Sangue. Jorrando. Pingando. Manchando o forro – branco.

Sou um artista. Ou poderia ser. Minha preocupação com o cenário, os detalhes... Quero saborear todas as sensações: o cheiro, o tato, o som. O gosto. Sim. Me aproximo do corpo. Devagar, sem piscar, em estado de contemplação. Agacho a seu lado, suave. Além de tudo, seus cabelos são negros. A harmonia perfeita. Da Vinci invejaria minha musa. O corpo magro, na medida certa, sem perder as curvas. Poucos pelos. Longos cabelos escorridos. Deitada, com os braços cruzados sobre o colo, os olhos cerrados. Pacífica.

Seguro o canivete, meu cavalete. É hora de começar. Faço um pequeno rasgo na barriga. O sangue se derrama perto do umbigo. Escuro. Espesso. Sigo com cuidado a curva de cada seio, por baixo. O líquido corre para se juntar ao da outra parte. Que efeito! Ponho a língua de fora e ouso tocar a poça vermelha em formação. Amargo. Bom. Lambo mais. Mordo o abdome. Como um cão. Somos todos animais. Me afasto um pouco para observá-la. Linda. Colorida. Marcada. O tic-tac de seu coração inerte ainda ecoa no ambiente silencioso.

Sei, por instinto. É o momento do grand finale. Volto à posição anterior. O canivete perfura sua garganta de ponta a ponta. É o sangue mais vivo, o que prenuncia a morte. O mais saboroso. Sugo dessa fonte de petróleo rubro. Néctar de energia pulsante, renovadora. Satisfeito, levanto e limpo a boca. O canivete também. Silêncio. Orgulho de minha obra, já posso descansar. Registro em minha mente o retrato da cena recém-construída. Sangue seco. Borrões na pele como tinta na tela. A vanguarda dos limites do corpo humano.

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