quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Mergulho (conto)

 

Se eu pular, você pula. Lembro daquela noite de chuva em que nos conhecemos. Você cheirava a cachorro molhado e eu toda encolhida embaixo da marquise. Até que apareceu um salvador com um guarda-chuva, você veio me resgatar. Não costumo aceitar caronas de desconhecidos, mas considerei as circunstâncias e confiei na sua cara de bom moço. Se eu pular, você pula. A conversa no carro foi muito agradável e divertida. Trocamos telefone e transamos dois dias depois. Tínhamos muito tesão um pelo outro, principalmente no começo. Parecíamos dois coelhos no cio. Mas também gostávamos de conversar e tomar um bom vinho, ver um filminho, qualquer bobagem que pudéssemos fazer juntos. Se eu pular, você pula.

Sua família gostava de mim. Nos demos bem logo de cara. Mas minha mãe implicava um pouco com você, eu não entendia o porquê. Devia ter escutado. Se eu pular, você pula. Em pouco tempo, a coisa ficou séria e fomos morar juntos. Éramos dois idiotas apaixonados e felizes, cheios de sonhos... Já vi esse filme. Ele acaba mal. Se eu pular, você pula. A princípio, eu não queria ter filhos. Na verdade, era um pouco indiferente à ideia. Achava que ficaríamos bem só nós dois. Não morreríamos de tédio. Porém, a paixão nos leva a tomar atitudes sem pensar. Engravidei. Você queria muito. Eu passei a querer depois. Se eu pular, você pula.

Nossa filha foi o maior presente de nossas vidas. É incrível gestar um ser humano e acompanhar seu crescimento! O que é bem menos incrível é a sobrecarga que passei a ter. Se eu pular, você pula. Na sua rotina, pouco mudou. Trabalho, sexta-feira com os amigos, futebol na TV e alguns momentos de brincadeira com a menina já o tornavam o pai do ano. Todo o resto do trabalho era meu. Comida, banho, dia a dia, fora a arrumação da casa... “Coloca ela na creche”. “Contrata uma empregada”. Suas soluções eram sempre muito simples e envolviam investimentos financeiros. Afinal, você era um homem de negócios, não um homem de cuidados. Se eu pular, você pula.


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Leia a continuação do conto na 6ª edição da revista Contos de Samsara, cujo tema é morte.

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